O bebé no lixo, o estigma e o julgamento


Pensei se escreveria sobre isto ou não, afinal é um tema muito recente, muito controverso e que talvez vá cair extremamente fora daquilo que é esperado de um blog, ou pelo menos deste blog. Porém é por isso mesmo que decidi escrever na mesma, porque mentalizei-me que escrevo para me agradar a mim primeiro, sem esperar que alguém dê muita importância a isto mas esperando igualmente que alguém queira ter uma conversa sobre o tema.

Venho falar sobre o caso do bebé deixado num eco-ponto do plástico, há pouco dias atrás, e encontrado por um sem-abrigo que por acaso reparou no som vindo de dentro daquele local. Sabe-se agora que a pessoa que deixou ali a criança é uma mulher cabo-verdiana de 22 anos, também ela sem-abrigo. A nacionalidade dela nada tem que ver com a questão, mas o facto de sabermos a sua idade e condição social poderá ajudar em muito a entender, não obrigatoriamente aceitar, o seu acto.

Quando a notícia apareceu li comentários atrás de comentários de pessoas chocadas, com julgamentos enormes sobre o acto condenável. Eu própria, sem falar e sem querer condenar, fiquei chocada com o facto de se ter descartado assim um recém-nascido num local tão pouco apropriado. Não que haja locais apropriados para se descartar uma criança, mas aquele pareceu-me absolutamente horrendo.

Claro que o choque é normal, é humano. O que me incomodou foram as pessoas que começaram a "escrever cartas" nas redes sociais na voz do pequeno menino, como se o mesmo falasse com a sua mãe, o seu pai e quem ali o deixou. Ninguém tem o direito de falar na voz de outros, por mais pequeno que alguém seja. Ninguém, sem saber, tem o direito de apontar directamente o dedo à mãe biológica. Li, e com razão, que apesar de ter ainda o cordão umbilical e estar ensanguentado do parto, ninguém podia afirmar que tinha sido a progenitora a deixar a criança ali. Porém, na sociedade em que vivemos partimos logo do princípio que fosse, mesmo sem saber.

A maioria destas pessoas, que condenaram esta mulher - agora sabemos que foi realmente ela que deixou a criança num contentor - são as mesmas pessoas que são contra o aborto. Eu, na minha cabecinha, acredito que o aborto podia ter salvaguardado esta situação mas infelizmente, nos dias que correm, o estigma e a vergonha das mulheres ainda é muita porque ao seu redor há demasiados velhos do Restelo prontinhos a esticar o dedo.

Outra coisa que muita gente não entende é que a gravidez não é linda, maravilhosa e que mal nasce uma criança uma mulher vira mãe e fica com os olhos a brilhar de amor. O puerpério é um momento terrível do pós-parto na vida de uma mulher, é aquilo que muitas vezes conduz à temível depressão pós-parto, há não aceitação imediata da criança que nasceu. Muitas mulheres, agora mães que adoram os seus filhos, passaram por isto. O corpo da mulher sofre transformações enormes nesta fase, tanto a nível físico como especialmente a nível psicológico, e as hormonas a tentarem ajustar-se ao facto de já não haver um bebé no corpo, começam uma revolução que leva uma pessoa a correr todos os estados psicológicos e emocionais que possam existir.

Assim sendo, conhecendo um pouco da realidade, obriguei-me a parar e pensar que ninguém entende o sofrimento pelo qual esta mulher pode ter passado e que talvez tenha cometido aquele acto de forma não totalmente consciente, ou até mesmo num pico de ansiedade e transtorno psicológico enorme.  Antigamente havia "a roda" onde se deixavam bebés indesejados, a maioria nascidos de meninas "do bem" fora do casamento, ou de famílias muito pobres, numa altura em que não havia acesso à contracepção.

Nos Estados Unidos, em alguns estados, existe um programa chamado Safe Heaven, em que uma pessoa pode deixar uma criança num hospital ou num local específico, virar costas e partir para a sua vida, sem precisar de dar nomes, justificações ou o que quer que seja. Isto salva vidas, quer de quem nasce, quer de quem a teve. Em Portugal muitos dizem que a mãe o podia ter dado para a adopção mas para isso ela teria de dar os seus dados, e sabendo o que se sabe hoje, provavelmente a mulher poderá nem estar legalizada e uma simples "doação" para a adopção acabaria com mais tramites legais e burocracias do que aquilo que seria esperado. 

Muita gente falou de onde estaria a mãe daquele criança, e o pai também. Falaram sem saber a dizer que aquela criança precisava do colinho, quentinho e a amor. Sabemos agora que nem a mulher tem isso, nem colo, nem quente, nem amor. O pai? Não se sabe. Pode ter sido uma relação infeliz, pode ter sido abuso, pode ter sido descuido, pode até ter sido prostituição. O pior é que a maioria das pessoas, com acesso à internet nos dias que correm, sentem-se no direito de vociferar atrocidades e julgamentos sem dados nem provas.

Não acredito que tenha sido correto deixar um recém-nascido assim num contentor de reciclagem, mas sei que não sei o que aquela mulher sentiu. O pânico, o medo, talvez nem sentiu afectividade com aquele ser que saiu de dentro dela. O ser mãe não se faz numa gravidez, mas ninguém tem o direito de julgar assim uma pessoa.

Infelizmente ainda há um grande estigma em torno das fases menos boas da gravidez, dos acessos de depressão que uma mulher sente muitas vezes durante longos meses após o parto. Ainda há um estigma de que não se pode falar das coisas menos boas de se fazer nascer uma criança e assim se vê o estado de um povo que parte logo a apontar dedos sem pisar o mesmo caminho que aquela pessoa pisou. 

A contracepção nem sempre funciona, mesmo quando se usa tudo e mais alguma coisa. Por vezes há descuidos e ninguém tem de mudar a sua vida para ter uma criança, quando muitas vezes nem sequer é possível. A ideia de que "tudo se cria" faz-me comichão, faz-me porque nos dias que correm dizer que tudo se cria não implica os custos de ter um filho, de o alimentar, vestir, manter, dar uma casa, educação. A ideia de que "só os faz quem quer" também me incomoda. Parece que todas as crianças nascidas neste mundo foram cuidadosamente planeadas, desejadas e que uma pessoa as fez em plena consciência da concepção. 

As coisas acontecem mas é o estigma e o julgamento que por vezes levam as pessoas a cometer atrocidades, a agir sem pensar, sem esperar. Julgar é humano mas parar para pensar também e talvez pensar que "e se fossemos nós, como seria?".


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Joana, 33 anos e natural da cidade do Porto. Fotógrafa de profissão, louca por viagens e sempre com demasiadas opiniões para dar. Escrevo neste blog desde 2009, sendo que o mesmo já mudou tantas vezes quanto eu mudei ao longo dos últimos 14 anos. Depois de um hiatus entre 2020 e 2023, o blog está de volta!